Pedras que rolam
Às vezes penso nas pessoas cujos caminhos cruzaram-se com os nossos sem que tenhamos percebido. Poderíamos ter sido amigos ou inimigos.
Um dia desses encontrei o Nestor Müller, com quem já tive algumas lições de filosofia. Mas este encontro casual foi o mais demorado, porque refizemos, em nossa conversa, muitos dos caminhos por que passamos para que chegássemos aqui. E isso aconteceu porque descobrimos quantidade imensa de estradas paralelas. Com diferença de uns dez anos ou mais, porém paralelos.
Na pré-adolescência, morei na cidade de Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul. Ainda criança, o Nestor já existia a uns poucos quarteirões da nossa casa. Há cenas comuns em nossa memória. Na cidade não havia curso ginasial (era esse o nome) e estudei um bom tempo em colégio interno. Nas férias, longas viagens de trem, geralmente sozinho, praticamente atravessando o estado de sul a norte. Pessoas da minha pouca idade, naquele tempo, não precisavam de autorização para viajar. À tarde, no fim da tarde, o trem atingia a estação em Santa Bárbara. Um ônibus velho esperava os passageiros da estrada de ferro para levá-los a Palmeira das Missões. Lembro-me da estrada de terra atravessando os campos que cobriam suaves colinas. O Sol beliscando o horizonte e a poeira vermelha que deixávamos para trás. O Nestor também guarda essa paisagem na memória. O cinema, o clube, o hotel e a rodoviária. Foram todos os mesmos que compartilhamos em uma cidade que há muito deixou de existir.
Pouco tempo mais tarde, fui parar em Porto Alegre. Lá vivi com maior intensidade meu desejo de ser pianista, que troquei pela necessidade de escrever. Cantei no coral da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a OSPA, no tempo em que seu regente era o húngaro Pablo Komlós. Surpresa: o Nestor tornou-se violinista e frequentou todos os concertos da OSPA e conheceu o maestro, com sua cabeça redonda, os lábios grossos e o cabelo ralo. Lembrar esses detalhes de uma fisionomia, senti que nos devolvia a um passado que não existe mais a não ser em nossa memória. Além disso foi aluno de um dos irmãos Fisher, violonistas da orquestra, os gêmeos de que me lembro muito bem. O Nestor abandonou o violino e eu o piano. Hoje ele é professor de filosofia, eu fui de literatura.
Muitos anos se passaram sem que soubéssemos um da existência do outro. Viemos nos encontrar em Ribeirão Preto, no coração de São Paulo, depois das muitas e tortuosas andanças a que a vida nos levou.
Às vezes fico pensando na quantidade de pessoas cujos caminhos cruzaram-se com os nossos sem que tenhamos percebido. Poderíamos ter sido amigos ou inimigos, poderíamos tê-las influenciado e ter sofrido sua influência. Sim, porque todo contato humano, por tênue que seja, deixa marcas que, na maioria das vezes, não chegamos a perceber. Somos o resultado da totalidade de nossas experiências.
“A tarde caía devagar”, e era preciso rolar para outros lados.
Carta Capital, por Menalton Braff, em 03/03/2014
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