Aliança entre mídia e setores do Judiciário é 'escandalosa' e ameaça
direitos
Justiça brasileira se depara com contradição entre
dever de defesa dos direitos fundamentais e tentação de agradar a determinados
interesses apresentados como porta-vozes da opinião pública
São Paulo – A recente influência
dos meios de comunicação em decisões judiciais – fenômeno cujo maior símbolo é
o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão – é decorrência direta do
sensacionalismo televisivo em torno dos julgamentos criminais aliado à
tendência de se considerar alguns direitos fundamentais como obstáculo à
eficiência do Judiciário em punir. Segundo operadores do Direito ouvidos pela RBA,
essa receita ameaça seriamente esses direitos, conquistados a duras penas no
século 20.
Na semana passada, o presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, suspendeu uma decisão do
ministro Ricardo Lewandowski que determinava à Justiça do Distrito Federal a
análise de pedido de trabalho externo feito pelo ex-ministro-chefe da Casa
Civil José Dirceu, condenado no julgamento do mensalão. Antes, o pedido de
análise do benefício, pela defesa de Dirceu, havia sido suspenso pela Vara de
Execuções Penais do Distrito Federal com base em nota do jornal Folha
de S. Paulo de 17 de janeiro, considerada depois inverídica por
investigações do Núcleo de Inteligência do Centro de Internamento e Reeducação
do sistema penitenciário.
O ex-ministro cumpre pena em regime fechado, embora tenha tenha direito
ao regime semiaberto porque sua pena, de sete anos e 11 meses até aqui, é
inferior ao tempo mínimo de regime fechado, de oito anos.
“O Judiciário hoje se encontra numa
encruzilhada entre a origem aristocrática de um poder encastelado, que nasceu
comprometido com a manutenção do status quo e, por outro lado,
o que se tem chamado de ‘tentação populista’: dar respostas que agradem aos
meios de comunicação de massa”, afirma o juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de
Janeiro Rubens Casara. “Existem alguns sintomas desse movimento em decisões
recentes”, acrescenta o magistrado, membro da Associação Juízes para a
Democracia.
“Considero grave a influência da mídia sobre o Poder Judiciário, e nos
processos criminais isso se dá inclusive em função do fato de os julgamentos do
Supremo serem televisionados”, avalia o advogado Antonio Carlos de Almeida
Castro, o Kakay. Para ele, o acesso do público à TV Justiça tem importância
“enorme”, por dar transparência a questões judiciais. “Mas nunca em processos
criminais. Esse excesso de exposição que se faz dos processos criminais é algo
absolutamente escandaloso.”
Para Casara, é “extremamente perigoso” que uma maioria formada pelos
meios de comunicação influencie decisões judiciais. “Porque o Judiciário
democrático, ou pelo menos nas democracias, é contra-majoritário. Isso
significa que ele tem que decidir contra a opinião pública, contra a opinião
publicada, se isso for necessário para assegurar os direitos fundamentais.”
Segundo o magistrado, veículos de imprensa tendem atualmente a ver
direitos fundamentais, à ampla defesa e ao devido processo legal, por exemplo, como
se fossem obstáculos a uma eficiência “punitivista”, ou seja, a uma punição
rápida e exemplar. “Mas são conquistas da humanidade, muita gente morreu para
que esses direitos fundamentais hoje estivessem positivados. Eles têm de ser
respeitados mesmo que isso desagrade à opinião pública, que muitas vezes é
forjada na desinformação, segundo determinados interesses muito bem
identificáveis.”
Kakay concorda que os interesses pairam no ar. “Existem setores da mídia
que obviamente têm interesses específicos em alguns julgamentos e fazem acordo
com pessoas do Judiciário, de forma geral. As coisas não são desconectadas.”
Transmissões ao vivo
“O Brasil é o único país importante do mundo que transmite ao vivo as
sessões de sua Suprema Corte. Nos Estados Unidos, por exemplo, só se divulga o
resultado. Na Europa há uma série de restrições para coibir o sensacionalismo
em torno dos julgamentos criminais”, lembra o advogado Luiz Fernando Pacheco.
“Essa cobertura massiva do julgamento criminal influencia os próprios juízes e
o resultado do julgamento.”
“Julgar um processo criminal ouvindo ‘a voz das ruas’ é um estupro
constitucional, um atentado à Constituição e ao Estado democrático de Direito”,
diz Almeida Castro. “O processo criminal se faz com base em prova produzida,
não em cima daquilo que a imprensa ou quem quer que seja está dizendo que é.”
Na visão dele, diferentemente do Ministério Público, que tem “obrigação”
de investigar as notícias divulgadas na mídia, o Judiciário não pode se
manifestar de uma forma concreta com base em notas de jornal. “Principalmente
restringindo direito de alguém, sem que se tenha uma investigação séria.”
Soluções?
Os advogados veem algumas possibilidades contra a tendência atual. “Nos
Estados Unidos, em 1991, o sobrinho do ex-presidente John Kennedy, William
Kennedy, estava sendo acusado de estupro e havia uma pressão da mídia muito
forte pela condenação. A pressão foi tão grande que o julgamento foi suspenso
até que os ânimos se acalmassem, e ele foi absolvido no final. Essa é uma medida”,
acredita Pacheco.
Para Almeida Castro, além do debate, o próprio tempo pode ajudar a
corrigir as distorções. “Os erros foram tantos que algumas pessoas que se
julgavam heróis já estão hoje sendo olhadas pela sociedade com certa ressalva.
Ninguém é dono da verdade, ninguém pode atuar como se fosse o único ator do
estado democrático de direito. A vida dá voltas. Um dia isso pode bater do
outro lado”, prevê.
Agravo
O presidente nacional do PT, Rui Falcão, protocolou quarta-feira (19)
agravo regimental no STF no qual reafirma o pedido para que o ministro Gilmar
Mendes se explique sobre as declarações à imprensa nas quais insinua haver
lavagem de dinheiro, pelo PT, nas “vaquinhas” feitas por familiares e amigos
dos condenados na AP 470 para o pagamento das multas decorrentes do julgamento.
A ação se dirige ao ministro Luiz Fux, que negou ao partido o primeiro
pedido de explicações de Mendes em juízo, há duas semanas. No novo pedido, o
presidente do PT pede que a análise seja feita pelo plenário do STF.
Na decisão contestada, Fux, relator do caso, não reconhece a
legitimidade da direção do PT para ingressar em juízo em nome dos filiados. “O
diretório nacional do Partido dos Trabalhadores tem, sim, legitimidade ativa
para ingressar com a presente Interpelação Judicial Criminal”, contra-argumenta
o partido no agravo. Segundo a sigla, a interpelação criminal judicial é
providência de quem se sente moralmente afetado pelas declarações dúbias, e a
pessoa jurídica tem “honra objetiva”.
por Eduardo Maretti, da RBA publicado 21/02/2014
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