A concentração dos rendimentos e da propriedade,
resultado da aplicação das políticas neoliberais, está a empobrecer de
uma maneira muito marcada as instituições chamadas democráticas, até o
ponto de as anular.
Uma das características da situação dos dois lados do Atlântico Norte
foi o enorme crescimento das desigualdades, com uma grande concentração
dos rendimentos e da propriedade, unida à grande deterioração das
instituições democráticas, causada por esta concentração. As
instituições políticas dos países estão muito influenciadas por poderes
financeiros e económicos e pelos setores com maior riqueza, que induzem
as intervenções públicas a favorecer os interesses destes poderes e
setores à custa dos da maioria da população.
Isto está a criar uma perda de legitimidade e de apoio popular às
instituições chamadas representativas, junto com a diluição da confiança
que a cidadania tinha no poder do Estado (dirigido pelas autoridades
políticas) para garantir um progresso do desenvolvimento económico do
país, de tal maneira que as gerações novas vivessem melhor que as
anteriores. Esta esperança desapareceu. Na realidade, grandes setores da
população, que nalguns países chegam à maioria, são conscientes de que
“os filhos não viverão melhor do que os seus pais”. Este sentimento
ficou muito bem refletido nas declarações do candidato, mais tarde
presidente de França, François Hollande, expressadas durante a campanha
eleitoral naquele país. “Até há pouco – disse Hollande – todos tínhamos a
convicção de que os nossos filhos teriam melhores vidas que nós. Já não
é assim. Esta convicção, que respondia a uma realidade, está a
desaparecer”. Esta situação é paradoxal, pois a riqueza dos países
(incluindo a França) continua a crescer, na medida em que cresce a sua
economia, realidade que só se interrompeu recentemente com a Grande
Recessão. Mas esta convicção (e realidade que a sustenta) já existia
antes da recessão, ainda que se tenha acentuado mais com a crise atual.
Como é possível que a sociedade seja mais rica e que, em contrapartida, os filhos vão viver pior que os seus pais?
A resposta a esta pergunta é que o crescimento económico se distribui
muito desigualmente, concentrando-se nos rendimentos superiores, como
resultado das políticas públicas que se aplicaram na maioria dos países
do Atlântico Norte. Estas políticas foram iniciadas pelo presidente
Reagan nos EUA e pela Sra. Thatcher na Grã-Bretanha, na década de
oitenta do passado século.
No seu artigo “The Rich get Richer. Neo-liberalism and Soaring
Inequality in the United States” na revista de economia norte-americana Challenge (março-abril
de 2013), o autor, Tim Koechlin, detalha a grande concentração dos
rendimentos e da riqueza nos EUA como consequência da aplicação destas
políticas. Em 1979, os 1% da população com maiores rendimentos (os super
ricos) ganhavam 9% de todo o rendimento dos Estados Unidos. Em 2007,
esta percentagem aumentou para 24%, a mais elevada registada desde 1920,
quando se iniciou a Grande Depressão nos EUA.
De onde procede esta concentração dos rendimentos e da riqueza? A
resposta reside na má distribuição da riqueza criada pelo mundo do
trabalho. Os dados mostram-no claramente. A produtividade do trabalhador
durante o período 1973-2008 praticamente duplicou. Isto é, um
trabalhador produzia por hora quase mais duas vezes em 2008 do que o que
produzia em 1973. O seu salário, no entanto, cresceu só 10% durante o
mesmo período. Mas os diretores das grandes empresas viram crescer os
seus rendimentos desmesuradamente. Enquanto o CEO (Chief Executive
Officer) de uma grande empresa recebia em 1973 22 vezes mais que o
trabalhador médio da sua empresa, em 2008 esta relação subiu para 231
vezes (segundo Lawrence Mishel, The State of Working America. A report of the Economic Policy Institute. 2012, table 4.33).
Uma situação ainda mais acentuada ocorre quanto à distribuição dos
elementos da propriedade que geram renda (tais como terras, ações,
bónus, etc.). Entre 1983 e 2010, os 5% da população com maior
propriedade viram-na crescer 83%, enquanto os 80% de toda a população (a
grande maioria da cidadania) viam descer a sua propriedade em 3,2%. Em
consequência, os 1% da população com maior riqueza, que tinham 20% de
toda a riqueza em 1971, passaram a ter 35% em 2007. Os 10% dos super
ricos em 2007 tinham 73% de toda a riqueza, enquanto os 40% das famílias
(as classes populares) tinham só 4,2% de toda a propriedade. A
concentração da riqueza atingia níveis ainda mais exuberantes em alguns
tipos de propriedade. Assim, os 10% da população tinham 98,5% de todos
os valores financeiros (ações e outros títulos de crédito), enquanto os
90% restantes tinham só 1,5%.
A concentração de poder económico e financeiro enfraquece enormemente a democracia, até o ponto de eliminá-la em muitos países
Esta enorme concentração dos rendimentos e da riqueza dificulta e
impede o desenvolvimento democrático de um país, pois os sectores ricos e
super ricos da população exercem uma enorme influência, poderia
dizer-se controlo, sobre os aparelhos dos seus Estados e os seus ramos
executivos, legislativas e judiciais. Mais, estes grupos e setores
desenvolvem as suas próprias redes, associações e conferências (nas
quais são incorporados dirigentes políticos de todas as sensibilidades
políticas), promovendo as suas ideologias, que coesionam e defendem os
seus interesses, apresentando-os como os únicos aceitáveis ou
respeitáveis, e as suas políticas (que favorecem os seus interesses)
como as únicas possíveis.
As alianças destas elites desempenham um papel chave nas realidades
políticas. O casamento entre os super ricos e ricos, por um lado, e os
políticos conservadores e liberais (e de uma maneira crescente algumas
personagens da social-democracia), pelo outro, é uma constante nos
sistemas políticos, fonte de contínua corrupção. Há múltiplos exemplos
disso. A influência da família que governa um sistema quase feudal, o
Qatar, nas instituições políticas europeias não é menor. O presidente
Nicolas Sarkozy deu amplas vantagens fiscais aos interesses dessa
família, que lhe subvencionou as campanhas eleitorais e mais tarde as
suas atividades pós-presidenciais. Tony Blair é um dos assessores melhor
pagos do J.P. Morgan (e é frequentemente convidado por fundações e
grupos de reflexão para dar lições sobre o futuro da social-democracia).
E estou a escrever estas linhas no mesmo dia em que o Sr. Giuliano
Amato foi proposto como Presidente da Itália pelo Partido Democrático da
Esquerda italiana, sendo esse político um assessor bem pago do Deutsche
Bank. Em Espanha, a lista de Presidentes, Ministros e autoridades
políticas dos partidos maioritários em grandes empresas e nas suas CEO
(Endesa, Telefónica, Repsol, etc.) é enorme. Não é casualidade que o
preço da eletricidade e das chamadas telefónicas, bem como o do
petróleo, sejam dos mais caros da UE. Esta cumplicidade entre os grupos
financeiros e económicos e a classe política dominante é a
característica destes tempos. A imunidade da banca, com os seus
conhecidos paraísos fiscais, baseia-se precisamente nesta cumplicidade.
Não é preciso dizer que há muitos políticos que não fazem parte desta
engrenagem de cumplicidades. Mas as elites dirigentes estão sim
plenamente entrelaçadas com interesses fáticos que configuram em grande
maneira as suas políticas públicas. Daí que a grande maioria destes
super ricos e ricos não pague impostos, ou pague muito menos em termos
proporcionais, que o cidadão normal e corrente, coisa que é feita até
com a lei na sua mão, sem precisar de comportamentos ilegais (sem
excluir, no entanto, estas práticas, que estão também generalizadas).
A perda de legitimidade do sistema
Este sistema está em profunda crise. O casamento do poder
financeiro-económico com o poder político é o eixo do descrédito das
instituições chamadas democráticas, que tem a sua origem (causa e
consequência) nas enormes desigualdades. A excessiva proximidade entre a
classe política dominante e as classes sociais dominantes (as elites
financeiras e empresariais e os sectores afins de rendimentos
superiores) mostra-se com toda a clareza na distância existente entre as
elites dirigentes e as suas políticas públicas, por um lado, e as
classes populares, que constituem a maioria da população, pelo outro.
Estas últimas desejam políticas diferentes e opostas às que as primeiras
estão a promover e implementar. Existem múltiplos exemplos disso. A
grande maioria das populações do Atlântico Norte consideram que 1) os
rendimentos do capital deveriam ser taxados na mesma proporção que os
rendimentos do trabalho, sem que isso tenha sido aceito pelos governos;
2) a fiscalidade deveria ser progressiva, de maneira que os super ricos e
ricos pagassem (na realidade, e não só nominalmente) em impostos tantas
vezes mais do que o cidadão normal e corrente paga quanto seja a
diferença de rendimentos e propriedade entre os super ricos e ricos, e o
cidadão normal e corrente; 3) dever-se-iam eliminar os paraísos
fiscais; 4) dever-se-ia estabelecer um máximo de riqueza e de nível de
rendimentos, como mecanismo de redução das desigualdades; 5)
dever-se-iam reduzir as desigualdades que (os 78% de cidadãos como média
da UE) consideram excessivas; 6) dever-se-ia eliminar a influência do
dinheiro nas campanhas políticas e na solvência dos partidos políticos;
7) dever-se-ia romper o casamento entre instituições financeiras e
empresariais e o mundo político; 8 ) um político não deveria poder
trabalhar no setor que regulava ou vigiava na administração pública, nos
primeiros cinco anos após deixar o cargo; 9) o Estado deveria intervir
no setor financeiro para garantir a disponibilidade do crédito a
famílias, indivíduos e médias e pequenas empresas; 10) deveria haver um
salário mínimo que permita uma vida decente e que aumente de acordo com o
aumento dos preços; 11) dever-se-iam garantir os serviços públicos do
Estado de Bem-estar, evitando a sua privatização; e assim um longo
etcétera. Nenhuma destas políticas está a ser levada a cabo nestes
países. E, a nível macroeconómico, a maioria da cidadania deseja o fim
das políticas de austeridade e quer políticas de expansão dirigidas a
criar pleno emprego. O facto de que não se realize cada um destes pontos
deve-se à excessiva influência que os grupos que concentram os
rendimentos e a riqueza têm sobre o Estado. E aqui está o problema da
democracia. Frente a esta realidade, limitar o debate à reforma política
sobre se devem ou não haver listas abertas, parece-me muito, mas muito
insuficiente.
Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Domínio Público” do diário PÚBLICO (Espanha), 9 de maio de 2013
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
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